domingo, 31 de agosto de 2014

plebiscito popular

em 2002 eu estava no grêmio da minha escola. eu tinha 13 anos e estava na sétima série.

um dia apareceram na escola dois caras mais velhos. eles estudavam na USP e eram do MST (em 2002 o MST era o graaande símbolo da esquerda. meu consciente político, construído em plenos anos 90, via a veja falar mal dos caras de um jeito tão ridículo, e via a luta de classes borbulhando nas lutas do campo - que eram as maiores lutas da sociedade brasileira então. desde pequena eu sabia que o meu lado era o lado do povo, do MST, contra a veja!). esses dois me levaram para umas atividades em que eu fiquei sabendo que tavam organizando um tal de Plebiscito Contra a ALCA.

o nome alca, que parece esquisito era uma proposta de "neo-colonização" dos estados unidos sobre a américa latina. o governo na época ainda era o FHC no Brasil e o Bush nos EUA. a Área de Livre Comércio entre as Américas era uma forma de aprovar e fortalecer a neo-colonização da américa latina.

eu achei a ideia fantástica. os estados unidos representavam pra mim tudo de ruim que havia. os caras tentavam dominar o planeta com seu jeito de ser, com a sua música industrializada, com as calças jeans que não fazem o menor sentido (são pesadas demais, quentes demais no verão e frias demais no inverno), com a MTV, com os filmes, com as guerras...

a proposta do plebiscito contra a alca tinha tudo a ver com a realidade daqueles tempos. com as angústias dos que cresceram nos anos 90 e questionavam o poderio estadosunidense...

eu tinha 13 anos e era minha primeira gestão de grêmio. lembro que eu e um amigo levamos dois fardos de folha sulfite como contribuição para a impressão de materiais. lembro que eu e um outro amigo tentamos ir para o curso dos mil mas não conseguimos achar o lugar e ficamos muito tristes.

mas e veio o plebiscito, e a gente organizou na escola. eu e mais alguns amigos organizamos a urna e conseguimos 62 votos. eu não votei porque a votação era só para maiores de 16, pessoas com idade eleitoral. mas organizei a votação.

a experiência da campanha contra a alca me marcou.

primeiro porque eu descobri nesse processo pessoas que resolveram entregar suas vidas para a construção de um país melhor, de uma vida melhor. me encantei com aquilo que pra mim sempre foi o maior exemplo de coerência: não descansar até que todos possam descansar. eram pessoas que estariam dispostas a dar a vida para criar um mundo melhor.

segundo porque eu sentia que eu podia segurar nas minhas próprias mãos os rumos da política em nosso país. os 62 votos que eu consegui com meus amigos também dependeram de mim. ajudei a montar a urna, a convencer as pessoas a irem votar... e foram 10 milhões de votos por todo o país, com os quais eu também contribuí. eu e meus amigos contribuímos para barrar a ALCA.

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hoje, 12 anos depois, se inicia um grande momento como aquele.

a campanha contra a ALCA trouxe para a militância milhares de pessoas, conquistou milhões de votos e fez história na política brasileira.

a campanha por uma constituinte exclusiva e soberana sobre o sistema político está extremamente conectada aos anseios populares, em especial aos anseios daquelas e daqueles que cresceram nos anos 2000: mudar a política, para que o povo tenha mais voz e mais participação na democracia.

Façamos nós por nossas mãos
Tudo que a nós nos diz respeito

sábado, 30 de agosto de 2014

o homem branco grisalho heterossexual II (ou "os nossos velhinhos")


(pra mim existe um personagem conhecido como "o homem branco grisalho heterossexual". costumo falar desse personagem porque acredito que ele personifica várias coisas, e porque procuro, com o jogo de palavras da escrita, questionar uma prática que existe de depreciar mulheres, negras, lésbicas, jovens, etc simplesmente por serem quem são. parece que ser qualquer coisa que não esse personagem homem branco grisalho e heterossexual é por princípio ser errada, ser louca, ser descompensada. nunca vi xingamentos que negativassem as características do homem branco grisalho heterossexual, mas é enorme a lista de xingamentos diretamente relacionados ao fato de as pessoas serem mulheres, negros e negras, fugirem do padrão heteronormativo, e a quem não é maduro, sério, etc... gosto de trabalhar com esse personagem porque ele explicita muita coisa. mas procuro tomar cuidado para deixar claro que nem todos os homens brancos grisalhos e heterossexuais são assim, e que a luta não é contra esses caras, mas a luta é simplesmente para que ser homem branco grisalho e heterossexual não importe em nada, não signifique privilégio, não signifique opressão.)

hoje eu quero falar sobre os nossos homens brancos grisalhos heterossexuais. sobre os que não cabem no personagem.

são os nossos antecessores. são os que vieram antes de nós.

se a maior parte deles foi (ou ainda é) homem branco grisalho e heterossexual é porque na época deles os homens brancos eram os que tinham mais possibilidade de ser intelectuais, artistas, militantes, mas também porque os homens brancos heterossexuais têm sua história mais contada pelos livros. porque são mais letrados e tiveram acesso à cultura escrita (que é a que permanece por mais tempo na face da terra) do que as mulheres e os negros. porque são os que mais tiveram condições de seguirem sendo militantes com o passar dos anos (e tiveram que se preocupar menos com os filhos, com as contas, com a vida).

mas os nossos antecessores sabiam e ainda sabem que a luta e a vida não depende só deles. não se acham os maiorais nem superiores à ninguém e trazem a humildade como uma das marcas mais profundas de seu caráter.

os nossos velhinhos (como carinhosamente chamamos) são nossos pais e avós históricos. são os que lutaram a vida inteira para corrigir as injustiças desse mundo. são os que - mesmo fruto de um mundo machista, racista e homofóbico - se questionam cotidianamente e enfrentam os preconceitos encrustados neles mesmos.

eles dividem as tarefas domésticas. eles se preocupam com a luta por creches porque sabem que a responsabilidade pelos filhos e netos é também deles. eles fazem luta por saúde, por moradia, por educação. se indignam perante as injustiças. eles podem até estranhar um pouco as músicas que a gente ouve, as roupas que a gente veste e o nosso jeito de falar, mas eles entendem que não existe isso de música, roupa ou jeito de falar certo. e preferem defender nossa liberdade do que nos estigmatizar com padrões moralistas.

apesar disso eles tem um senso de ética profundo, daqueles que só tem quem está há décadas na luta e não desistiu (e nem foi consumido pela vaidade ou pelo dinheiro). sabem que o companheirismo, o respeito, a igualdade, a solidariedade, o amor, a coerência e a verdade são valores que devem ser cultivados cotidianamente.

eles não nos olham de cima pra baixo, apesar de terem muito mais experiência que a gente. eles sentam num canto, mas se você chega perto eles sempre têm muita disposição para contar as histórias mais bonitas sobre as coisas que eles fizeram. e são histórias tão ricas de aprendizado que eu queria poder fazer só isso da minha vida, ouvir esses velhinhos.

eles sabem que o papel deles mudou, e não querem cagar regras num mundo que eles conhecem muito pouco. se esforçam para entender o facebook e o whatsapp, mas sabem que a gente sabe lidar melhor com isso (e com várias outras coisas da modernidade menos virtuais) do que eles. eles passam a bola pra gente da maneira mais gentil e educada que pode haver, nos ajudando a caminhar com nossas próprias pernas.

nossos velhinhos em sua época de protagonistas foram ousados. fizeram trabalho de base. debateram política com gente analfabeta. lutaram por educação numa época em que ela era mais inacessível do que é hoje. lutaram por um país mais justo na época que o brasil era muito pior do que é hoje. souberam combinar religião, cultura e política. inventaram coisas. pegaram em armas. assaltaram bancos numa época em que ninguém fazia isso. desafiaram autoridades. brigaram com os mais velhos (mais brancos, mais homens, mais heteros e mais ricos que eles).

acontece que a grande diferença entre os nossos velhinhos e o homem branco grisalho heterossexual é que os nossos não se utilizam do fato de serem homens para ser melhores do que as mulheres, não se utilizam do fato de serem brancos para ser melhores do que os negros, não se utilizam do fato de serem velhos para serem melhor do que os jovens e não ficam cagando regra na sexualidade alheia apesar de serem heterossexuais.
os nossos velhinhos sabem que a sociedade é machista, racista, homofóbica, opressora, dividida em classes, que segrega e que excluí. eles sabem que não estão apartados dessa realidade. mas se esforçam para serem humanos.

são os nossos velhinhos, são os nossos antecessores. muitos já vivem na história e outros têm passado da vida para a história por esses tempos. e eu amo e respeito muito muito muito eles.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

privado é político


não sei se foi a poesia, se foi ter nascido mulher, se foram as porradas dessa vida. sei que a duras penas fui aprendendo que o privado é político (e, logo, que cuidar é revolucionário). não é um texto com referência bibliográficas que trago (embora saiba que elas existem, porque já li, já estudei e não nego a importância da teoria) sei que me expresso melhor e com mais clareza quando falo assim: com a poesia, contando histórias, podendo ser eu mesma, artista, para falar de política.

entendo que seja algo esquisito esse meu jeito de me expressar. pode parecer não fazer tanto sentido, ser meio arrogante, meio agressivo, meio prepotente. peço que sejam carinhosos: assim como um pedreiro, ao falar de política, fala do concreto e da construção das casas; assim como um camponês usa as metáforas da colheita; assim como os homens falam do futebol; assim como um intelectual escreve textos políticos seguindo as regras ABNT; eu só sei me expressar assim. por favor se esforcem para entender o que digo, porque eu só sei dizer bem dito falando desse jeito.

o privado é político.
e essa é a verdade que me mantém viva.
porque esse mundo – olhem!
me ensinou que o privado é minha culpa, é minha sina, é meu destino.
de quando eu tentei me matar porque sofria com homofobia, aos onze anos de idade. de quando, com quinze, um homem bateu uma punheta sentado ao meu lado no ônibus, de quando eu me vestia com roupas largas para me sentir mais protegida, de todas as vezes que homens desconhecidos, no meio da rua ou do transporte público acharam que podiam fazer publicamente julgamentos e comentários (por mais “positivos” que fossem) sobre meu corpo, minha aparência, de todas as vezes que me passaram a mão, que me encoxaram, que me trataram como eu fosse coisa ou um pedaço de carne. de todas as vezes que insinuaram minha loucura, minha instabilidade emocional para me desmoralizar.

em todos esses momentos eu aprendi a me sentir culpada. aprendi que era pessoal. que eu estava me vestindo errado, me comportando errado, que eu era inteira errada e exibida demais.

essa culpa o mundo ensinou que é privado. eu aprendi na militância, no feminismo, no coletivo, que não era minha culpa. que eu não precisava ter vergonha, medo, tristeza. que eu não devia aceitar ser um pedaço de carne. que o sistema patriarcal é uma estrutura pesada, violenta, que se apropria do poder dos homens sobre as mulheres para lucrar. que transforma a mulher em coisa. que divide o público – com o que é político, com o que é dinheiro, com o que é importante – do privado – com a comida, com o cuidado, com o que não é tão importante “objetivamente”. que divide o objetivo do subjetivo como se o subjetivo não fizesse parte do objetivo e vice-versa. que divide o corpo da mente como duas coisas diferentes, como se não fizesse tudo parte de um só ser humano.

acontece que o privado é público também. a forma como educamos nossas crianças, nossos jovens. isso é político. e parece que às vezes a gente esquece.

a gente esquece porque é difícil de admitir. mas o nosso jeito de paquerar, de transar, de curtir uma festa, de fumar um cigarro, de beber uma bebida, de brincar, de fazer piada, de arrumar a casa, de dividir as tarefas domésticas, de manter a casa em ordem, de destruir os corações, de dar esporro, de contar fofoca, de fazer picuinha, de fazer piada com as pessoas mais novas, mais mulheres, mais negras, mais pobres, de achar que a capacidade de alguém é apenas a capacidade retórica, de ser paternal com os mais novos, de não deixar os mais novos errarem, de se achar muito importante, de fazer crítica... nosso jeito é político.

é político porque eu não posso aceitar que meu medo de andar sozinha na rua é um problema pessoal. eu não posso aceitar que meu medo de beber na rua é um problema pessoal. eu não posso aceitar que a dupla jornada de trabalho é um problema pessoal. eu não posso aceitar que salários diferentes para trabalhos iguais é um problema pessoal. eu não posso aceitar que dezenas de corações destruídos é um problema pessoal. eu não posso aceitar que o desânimo de tanta gente é um problema pessoal. eu não posso achar que ter vontade de desistir é um problema pessoal. eu não posso aceitar que o sentimento permanente de desvalorização é um problema pessoal. eu não posso aceitar que não conseguir falar em determinados espaços (com mais homens, mais brancos, mais velhos e mais ricos) é um problema pessoal. eu não posso aceitar que pouca habilidade com o pensamento teórico complexo é um problema pessoal. eu não posso aceitar que a vida seja uma coisa tão dura, tão fria, tão formal, tão desumana.

e é político porque hoje, depois de uns anos na estrada, eu aprendi que quando a gente presta atenção nessas coisas, tudo ganha uma potência enorme. que quando as mulheres enfrentam o medo de falar (que não é subjetivo, nem pessoal) o coletivo cresce, porque fica mais forte. e que fica mais fácil fazer isso em um lugar em que os homens, reconhecendo o machismo da sociedade, cuidam do espaço, para torná-lo mais agradável para as mulheres. que quando as mulheres se juntam para enfrentar o medo e fazem o que elas tem vontade de fazer, e se desafiam a ocupar lugares que não foram construídos para elas, elas mandam bem, ficam mais felizes, mais dispostas, com mais energia e mais vontade de fazer. e que fica mais fácil fazer isso quando as mulheres, reconhecendo o machismo da sociedade, cuidam umas das outras, se unem e se fortalecem. que quando os mais novos se desafiam a cumprir tarefas de direção, tarefas para as quais a gente nunca se sente pronto, os mais velhos são obrigados a compartilhar mais as tarefas e a vida fica melhor mais compartilhada. e que fica mais fácil fazer isso quando os mais velhos, reconhecendo todo o fetiche, o personalismo, a autoridade – que às vezes se confunde com autoritarismo – que existem no mundo, cuidam dos mais novos, estimulam, criam as tarefas compatíveis, acompanham, conhecem as vidas dos mais novos, ajudam nos problemas de casa, da escola, do trabalho, da família, e colocam desafios realizáveis, propiciando que os mais novos cresçam e sejam melhores do que os mais velhos (não é o grande sonho do educador que o seu educando crie um mundo – e aprenda a viver – melhor do que o presente?).

cuidar é ser companheiro. é compartilhar a vida. e a vida é mais do que as reflexões teóricas complexas. a vida é o que a gente vive, é o que a gente sente, é o pessoal e o político ao mesmo tempo. o cuidado é o respeito à humanidade do outro, é entender toda ação no mundo como ação pedagógica. é saber respeitar os limites, é saber entender que o jeito de se expressar do outro não é igual ao nosso e que precisamos construir formas de nos comunicar. é a gente dar apoio quando a vida fica pesada, é a gente emprestar dinheiro ou pedir dinheiro emprestado quando precisa. é a gente emprestar a casa. é a gente estar permanentemente atento para todas as desigualdades criadas por esse mundo e nos esforçar para criar espaços em que essas desigualdades sejam menos importantes.

como criar espaços em que os mais novos não sintam medo – apenas respeito – pelos mais velhos? como criar espaços em que as mulheres não sintam vergonha de dizer o que pensam? como criar espaços em que as negras e os negros não se sintam menos capazes? como criar espaços em que os mais pobres não se sintam burros?

as mulheres aprenderam a cozinhar e não a falar em público, e se não dermos o valor para a comida que a comida tem (alguém sabe viver sem?) vamos achar que as mulheres são menos capazes do que os homens porque não aprenderam desde crianças a falar bem em público.

as negras e os negros aprenderam a trabalhar de sol a sol sem descansar e não a formular ou a escrever, e se não reconhecermos que ser neto de um escravo analfabeto faz uma triste diferença, e se não entendermos o valor que tem saber trabalhar de sol a sol sem descansar, vamos achar os negros menos capazes do que os brancos porque não aprenderam desde sempre a formular.

os mais jovens aprenderam a debater política no facebook e no whatsapp e tiveram menos tempo (nessa vida acelerada) para ler livros da teoria clássica, e se não reconhecermos o valor que tem se expressar em poucos caracteres, digitar com habilidade no celular e no computador, vamos achar os jovens menos capazes do que os velhos porque usam gírias e hashtags.

e eu quis dizer tudo isso porque eu quero dizer que se a gente quer construir uma sociedade mais justa e mais humana, se a gente se pretende revolucionário, a gente tem que entender que o privado é político, e que isso não é só uma frase de efeito. isso tem consequência prática. e talvez uma das primeiras consequências práticas é que a gente tem que cuidar das pessoas. (não que isso seja fácil, mas é um esforço permanente. foi assim que me ensinaram).


quinta-feira, 21 de agosto de 2014

epidemia

eu sei que não está fácil,
mas precisamos que você se anime.
eu sei que é difícil persistir,
mas precisamos que você se anime.
eu sei que essa cidade, essa dinâmica, essa correria
fazem doer e adoecer,
engolem nossa vida porque roubam nosso tempo de viver,
mas precisamos que você se anime.

e eu sei que a solidão vai surgir
e eu sei que você ainda tem muito com que se decepcionar
e eu sei que da vontade de desistir
e eu sei que cansa e não há tempo de descansar

mas precisamos que você se anime

porque sem você a gente fica mais fraco
e sem seu ânimo fica difícil ter coragem
e eu sei que se estamos lado a lado
enfrentamos toda essa engrenagem

eu sei que você tem motivos de sobra e que já se decepcionou
que sofreu injustiças praticadas pelos que diziam te amar

mas precisamos que você se anime

porque para acabar com a epidemia
é necessário admitir e enfrentar a epidemia
superar a solidão, o consumismo, a violencia, o individualismo
superar a epidemia

e construir um mundo muito mais gostoso.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

beleza

é tão bonito tão bonito tão bonito
que faz o pequeno parecer grande
e o grande parecer pequeno

é tão bonito tão bonito tão bonito
que faz a coragem nascer do medo
e o cuidado nascer da coragem

é tão bonito tão bonito tão bonito
que faz a confiança tomar conta
e a insegurança sumir

é tão bonito tão bonito tão bonito
que faz a distância desimportante
porque mesmo longe tá lado a lado

é tão bonito tão bonito tão bonito
que arranca risada do choro
e acalma a ansiedade

é tão bonito tão bonito tão bonito
que mesmo sem saber explicar em palavras
já está dito em poesia

terça-feira, 12 de agosto de 2014

o homem branco grisalho heterossexual

o homem branco grisalho heterossexual é rico usa terno e gravata tem um carro que eu não sei o nome e que é tão grande que não cabe em uma garagem. ele é fundamentalista religioso - e não importa qual religião defende, mas apenas que ele coloca a religião dele acima do amor do desejo da vontade da alegria, e se acha no direito de impor suas crenças na marra sobre todo o resto da humanidade. no geral acredita numa religião que separa os bons homens dos homens maus. o homem branco grisalho é o homem que se chama de "cidadão DE BEM", que prega "direitos humanos para humanos direitos". para ele, os homens maus são sempre negros, malvados, sinistros, tristes, agressivos como se só eles fossem agressivos. os homens de bem são mais educados, instruídos, refinados, conhecedores da arte, frequentadores dos círculos de poder, falam diferentes línguas, escrevem, conhecem a ciência. eles dizem para nós "sempre atravesse a rua se estiver sozinha à noite, ao ver um homem", mas nunca diz que os homens não deveriam estuprar. o homem branco grisalho heterossexual só transa com mulheres mais novas que ele, porque não gosta de baranga. jovens mais novas que se admiram pela posição de homem branco grisalho heterossexual e rico e confundem amor com submissão. os piores do tipo contratam prostitutas e crianças e gostam de tudo "limpo e sem pêlos" como se mulher fosse boneca. ele gosta de mulher que não pensa, mas divide o mundo entre "mulheres pra casar" e "mulheres pra transar".

o homem branco grisalho heterossexual é dono de empresa, de empreendimento, dono de alguma coisa - ou se não é finge que é. trata seus funcionários como propriedade. trata os mais pobres, os mais negros, os mais jovens, as mais mulheres, todos, como se estivessem ali para servir a ele, o rei. ele se acha o rei e tem o rei na barriga. ele se acha mais importante do que as outras pessoas. ele responde "você não sabe com quem você está falando". o homem branco grisalho heterossexual bate em criança, bate em mulher. não se incomoda se o filho (uma reprodução dele mesmo) dirige bêbado, coloca foco em mendigo ou estupra uma menina bêbada numa festa. o homem branco grisalho heterossexual não se incomoda com a morte dos negros, com a morte dos pobres, com a morte dos gays, com a morte dos índios, com a morte das lésbicas, com a morte das travestis, com a morte das mulheres, com a morte dos moradores em situação de rua, com a morte dos dependentes de drogas, com a morte desde que ela não seja na sua família. não tem compaixão com o que acontece do lado de fora da sua bolha. acha que grevista e manifestante tem que ser preso e a polícia tem que descer o cacete mesmo, porque estão atrapalhando o trânsito.

o homem branco grisalho heterossexual é reacionário (mesmo que às vezes vista uma roupagem progressista, intelectual, descolada). ele acha que na ditadura era melhor. ele acha que os PTralhas destruíram esse país porque dão o peixe e não ensinam a pescar. o homem branco grisalho heterossexual não conhece a realidade do povo, do brasil, dos pobres. ele não consegue admitir que o país cresceu nos últimos 12 anos. ele acha que o governo aumentou muito o salário mínimo. ele acha um absurdo ter que registrar a trabalhadora doméstica e ter que pagar hora extra se ela dá a vida dela para cuidar dos filhos dele que ele mal vê. ele acha que cotas raciais são "racismo ao contrário". ele acha que o governo não devia se meter nos "problemas dos casais" e não acredita que existe violência doméstica, é só um tapinha. ele acha que uma família perfeita é a que ele manda e os outros obedecem, sua mulher e seus filhos, tudo propriedade. o homem branco grisalho heterossexual não se preocupa que as outras pessoas saibam pensar, ele não se preocupa em educar ninguém, ele só quer se manter no poder. ele pratica assédio moral, faz seus subordinados terem medo dele, medo de pensar, medo de expressar suas opiniões.

o playboy de hoje é o homem branco grisalho heterossexual de amanhã.

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e que fique claro: nem todo homem branco grisalho heterossexual é tudo isso, e esses não são comportamentos exclusivos de homens brancos grisalhos heterossexuais.

a questão é cada um perceber o quanto de homem branco grisalho heterossexual carrega em si.

(cá entre nós, tenho certeza que os homens brancos grisalhos e heterossexuais carregam dentro de si muito mais disso do que uma mulher negra jovem lésbica).

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

saudade

saudade

de uma música, de um momento
de uma pessoa, de um sabor

de uma voz, de um cheiro
de um lugar, de uma cor

de um tempo, de uma sensação
saudade de tudo que cabe no meu coração

quero dizer que não existe UM amor
que não existe UMA paixão
como um quadro branco em que se pinta uma cor
mas existe história
- de amor e dor -
como uma parede que branco pixo bomb cor pixo outra cor grafitti

mas que às vezes de poeira e cinza, de medo da dor,
nós às vezes desaprendemos a ver cor - e criação, e amor, e dor, e história

e, no cinza, não é dor nem amor, é só solidão.

e prefiro viver saudade que morrer solidão

às vezes eu sei que é tanta tinta que a parede não aguenta
é tanta lembrança que a mala não fecha

mas a gente tem que aprender a cuidar da memória com cuidado, e deixar espaço pra saudade sem deixar de viver o presente.

domingo, 10 de agosto de 2014

carta para o pai

pai,

fiquei muito tempo aqui pensando em como escrever um poema de dia dos pais. mas algum poema que pudesse agradar à outras pessoas, fazer sentido pra mais gente além de mim. mas eu percebi que não dá pra fazer um poema elogiando "os pais" por aí, porque tem muitos tipos de pais e, infelizmente, pais que não merecem elogio nenhum.

eu percebi também que existem dois tipos de pai no mundo. e que tem um pai que eu quero homenagear, e tem um pai que eu quero transformar.

o pai que eu quero homenagear é o pai companheiro. o pai que confia nos filhos e que os ajuda a ser cada dia mais responsáveis. quero homenagear o pai que educa, que não duvida da capacidade dos filhos, que se diverte com os filhos. quero homenagear o pai que fortalece os filhos, que critica quando erram porque quer fazer crescer. quero homenagear o pai que ensina que ser mimado é errado. quero homenagear o pai que ensina que o lugar mais humano que existe é ficar do lado do povo, a defender sobretudo os mais oprimidos, os mais pobres, as mulheres, as prostitutas, os favelados. quero homenagear o pai que ouve racionais e sérgio sampaio e que faz poesia concreta. quero homenagear o pai que brinca e é carinhoso. quero homenagear o pai que trata os filhos de igual pra igual e que sabe que seu papel é educar os filhos para que eles sejam melhor do que ele mesmo. e que sabe que o melhor ser humano que existe não é o mais rico e nem o mais famoso, mas o mais humano, o mais pleno de valores, de solidariedade e de amor.

o pai que eu quero transformar é o pai que chega atrasado. quero transformar o pai que grita mais do que precisa. quero transformar o pai que não sabe fazer tarefas domésticas. o pai que não sabe cozinhar, lavar ou passar (muito menos lavar um banheiro). quero transformar o pai que esquece das coisas. quero transformar o pai que se perde na televisão ou no jornal e responde todas as coisas com "uhum". quero transformar o pai que faz a mãe chorar. quero transformar o pai que bebe mais do que devia, joga mais do que devia, fuma mais do que devia. quero transformar o pai que se perde nas drogas, na violência ou na solidão. quero transformar o pai que confunde autoridade com autoritarismo. quero transformar o pai que não aceita os filhos como forem muheres, lésbicas, negras, baixinhas, gordas, inteligentes, tímidas, etc etc etc. quero transformar o pai que bate. quero transformar o pai que não se preocupa, que não pensa todo dia toda hora todo momento: como posso fazer que essa pessoa seja mais feliz, mais completa, mais humana e mais bonita do que eu?

mas sobretudo quero transformar o homem que nem chega a ser pai. o homem que acha que a responsabilidade dos filhos é da mulher. o homem que vai embora, que abandona, que vai cuidar da própria vida e "esquece" que criou outra vida no mundo. talvez esse tipo de pai eu não queira transformar não, esse tipo de pai eu quero que acabe. quero construir um mundo em que os homens tenham vergonha de não assumirem a paternidade, em que não seja normal homens que abandonam a família. quero construir um mundo em que os homens se esforcem, constantemente para ser cada vez mais um pai a quem seja possível homenagear. quero um mundo livre de machismo.

é isso o que eu acho dos pais, e isso não cabe num poema.

pai, a melhor declaração que eu posso fazer é gostaria de te homenagear por tudo que você é, e gostaria de te transformar todas as coisas que me incomodam em você. tenho orgulho de você ser um pai acima da média quando se fala sobre homenagens

te amo.
filha.

ps: pai, para ser sincera, eu acharia mais justo (pelo menos enquanto os homens ainda não conseguirem se transformar) homenagear mais as mães que criaram filhos sozinhas, apesar dos pais. você é lindo, mas elas merecem muito mais homenagem que você. em especial as empregadas domésticas, as babás que criam filhos que não tem nem pais nem mães. essas mulheres são as mais invisíveis, as menos lembradas. elas merecem muito mais reconhecimento que você. (e como essas datas comemorativas são muito mais comércio que qualquer outra coisa, e eu sei que posso te amar todo dia, prefiro aproveitar esse texto pra dizer que não podemos esquecer, nunca, delas).


aos cinco

essa história foi meu pai que me contou.


quando entrei na creche, eu era a mais nova da turma (essas coisas que tem de fazer aniversário em novembro, eu acho). meus pais resolveram me fazer repetir de ano (quando eu tinha dois ou três anos de idade, suponho).

no ano seguinte eu era a mais velha, já conhecia a escola e a professora e, além disso, sempre tive uma facilidade descompensada para decorar letras de músicas. e na creche se canta muita música. meu pai tem a tese de que essas coisas construíram em mim um espírito de "liderança", e acabou que desde então eu sempre tive muito protagonismo, e na escola era referência e ajudava a organizar as outras crianças.

nessa história eu estava no pré, ou coisa do tipo. lá pela primeira metade dos anos noventa. estudava numa escola particular cara e era provavelmente mais pobre que a maioria dos meus colegas (apesar de nunca ter percebido isso).

segundo meu pai, eu vivia talvez a época mais feliz da minha infância. eu adorava me fantasiar. minha mãe costurava as fantasias mais lindas. ela trabalhava em um teatro e aquele mundo me encantava. fantasias, maquiagem, contar histórias... esse era o meu mundo também. eu ia fantasiada para a escola algumas vezes por semana, e sempre inventava umas modas.

desse jeito meio doida meio vanguarda artística meio líder infantil eu vivia muito feliz. tinha muitos amigos. minha mãe fazia as lancheiras mais deliciosas com pães, salgados, delícias... todas bem saudáveis e gostosas, porque minha mãe sempre cuidou muito da alimentação e nunca teve pudores em gastar dinheiro com isso. meus amigos chamavam minha lancheira de "padaria" e eu sempre aprendi que tinha que compartilhar tudo que eu tinha com todo mundo. e compartilhava os pães, as fantasias, as brincadeiras, as músicas.


um dia entrou uma menina nova na minha turma. meu pai acha que ela me identificou de cara e teve inveja de mim. eu não lembro e não tenho certeza se foi isso. mas ela começou a virar amiga das pessoas comprando as amizades. ela comprava chocolate e refrigerante na lanchonete da escola.  ela dava dinheiro para as crianças para ser amiga delas.

um dia eu cheguei em casa com dinheiro que ela tinha me dado. não sei quanto era, mas naquela época dez reais (porque era o começo do plano real e porque eu era uma criança e tudo que eu podia querer eram doces e cada bala custava 1 centavo) era muito dinheiro.

pai e mãe me disseram que tava errado, que amizade não se compra e me falaram para devolver o dinheiro para ela. me explicaram que o valor da amizade não era financeiro e que o que ela estava fazendo não fazia bem pra ninguém.

voltei no dia seguinte para a escola e devolvi o dinheiro para ela. comecei a convencer minhas amigas que aquilo não era amizade, que elas tinham que devolver o dinheiro. mas ela apelou: começou a distribuir adesivos. (acho que só quem cresceu nos anos 90 lembra do que era a febre por adesivos do piu piu e afins).

ela criou um grupo de amigas do qual eu não podia fazer parte. continuava comprando as pessoas. meus pais tentaram falar com a escola, com a professora. mas nada adiantava, todos faziam vista grossa. pior: a professora às vezes inclusive emprestava dinheiro para a menina comprar chocolate na cantina pra criançada.



eu não lembro exatamente o que aconteceu depois disso, mas não muito tempo depois eu mudei de escola. fui pra uma escola pública, uma escola que foi uma das coisas mais importantes da minha vida.

meu pai disse que depois da menina que comprava amizades eu nunca mais fui tão feliz.



quando ouvi essa história da minha vida sendo contada assim, eu fiquei triste.

triste porque eu queria um mundo no qual eu pudesse andar fantasiada por aí quando me desse na telha sem ninguém me encher o saco, e que isso não fosse considerada coisa de criança ou louca.

triste porque me assusta o jeito como educamos nossas crianças, como educamos os mais jovens que nós. o que faz uma criança acreditar que pode comprar a amizade das outras?

triste porque observo uma dinâmica que é: temos tanto medo (como a professora) de admitir que não fizemos a nossa parte direito (que seria educar os mais jovens para um mundo com valores e princípios humanos, de solidariedade, de companheirismo, de carinho) que ao invés de corrigir rotas, as vezes fortalecemos o erro, simplesmente para não admitir que erramos (e compramos todas as nossas crianças).

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

presente

queria te dizer que do passado
guardo apenas a memória
dos dias bonitos
em que discutíamos política, arte e paixão
como se tudo pudesse ser um só

das conversas, da companhia
dos carinhos, dos cafunés
do chamego, do chêro
e dos sonhos mais verdadeiros

queria dizer que do presente
(mesmo esquecendo um pouco
do que eu sabia sobre arte e paixão)
quero compartilhar

companhia, ansiedade
loucura, calor
coragem e fé
amor