segunda-feira, 30 de junho de 2014

vergonha justa

a ordem me ensinou a ter muitas vergonhas. a me sentir culpada por muitas coisas. mas nunca as certas.
companheiras e companheiros negros, que fizeram a crítica dolorida, me ensinaram a sentir uma vergonha justa.

esse texto é sobre isso.

eu sempre tive vergonha de ser mulher. vergonha de não saber sentar direito, com as pernas fechadas. vergonha de não saber segurar o garfo direito. vergonha de não me vestir "igual menina". vergonha de gostar de sexo. vergonha de usar saia curta. vergonha dos meus pêlos, sempre tantos e tão escuros. vergonha pelos peitos pequenos. vergonha pela bunda grande. vergonha por não saber usar salto nem maquiagem. vergonha de não saber a resposta. vergonha de falar ao telefone. vergonha de não saber o nome das pessoas. vergonha por ser gorda. vergonha por não conseguir ser igual às mulheres da tevê. vergonha por não ser a mulher que ele achava que eu era. vergonha por estar sozinha. vergonha por estar mal acompanhada. vergonha por transar na primeira vez. vergonha de falar as coisas que me incomodam. vergonha de ser muito alta. vergonha de parecer sapatão. vergonha de desejar. vergonha de me apaixonar loucamente. vergonha de tomar decisões. vergonha de estar em posições de poder. vergonha de aparecer. vergonha de viajar sozinha. vergonha de falar com o mecânico. vergonha das cantadas na rua. vergonha.

quanto mais escrevo e vivo e amadureço e conheço o mundo, entendo que essa vergonha não faz nenhum sentido. que nossos padrões de beleza são estúpidos, as roupas e as coisas que as mulheres tem que fazer para serem bonitas são absolutamente desconfortáveis. que sexo é bom e eu tenho todo direito de gostar e ter vontades. que meu corpo e meus desejos são o que eu sou, e que vou bem, obrigada. que eu não preciso me casar para não me sentir solitária e que não vou encontrar a felicidade da minha vida em um homem. que não sou culpada pelo machismo alheio e que ter vergonha não adianta, o melhor é enfrentar. fui aprendendo, porque é muito difícil não ter vergonha, um mecanismo mágico pra enfrentar a vergonha toda vez que ela aparece: ter vergonha de ter vergonha. olhar pra mulher que eu quero ser e saber que me dá orgulho ser mulher e enfrentar a porra toda.

mas me ensinaram (ainda bem) a ter uma outra vergonha, uma vergonha justa: vergonha de ser branca. vergonha de ser estudante da USP. vergonha de ter tido uma empregada doméstica que dormia na minha casa, negra, nordestina. vergonha de chegar aos vinte e cinco anos de idade sem nunca ter tido que trabalhar e pagar todas as minhas contas. vergonha dos privilégios.

a vergonha é justa porque não culpabiliza a origem, mas a opção, as escolhas de vida. sei que não tenho culpa por ter nascido branca, por ser filha da minha mãe e do meu pai, por não ter precisado trabalhar cedo. mas sei que tudo isso me privilegiou e segue me privilegiando. tudo isso faz minha vida ser muito mais fácil, mesmo que ela não seja fácil. tudo isso me coloca, de partida, com uma vantagem muito injusta sobre aqueles e aquelas que mais trabalharam, mais suaram e mais deram a vida construindo toda a riqueza do nosso país: o povo preto, trabalhador, em especial as mulheres. e ao mesmo tempo que não tenho culpa pela minha origem, tenho que assumir a responsabilidade pelo meu presente. tenho que saber questionar quando pessoas brancas como eu fazem comentários racistas. tenho que achar um absurdo toda vez que vou pra algum lugar (seja a faculdade, um jantar de família ou uma reunião de trabalho) e não encontro negros. tenho que privilegiar os negros (em detrimento de mim mesma) para assumirem as tarefas mais importantes, os papéis de destaque.

mas olha: sou branca mas uma parte muito pequena e distante da minha família foi exploradora. outra parte, como o bisavô libanês que veio sozinho para o brasil com seis anos em um navio e trabalhou a vida inteira de sol a sol, sempre foi trabalhadora e eu me orgulho do sangue trabalhador que corre nas minhas veias. mas mesmo assim sei que é um privilégio eu poder usar o sobrenome que foi do meu bisavô, que se pesquisar eu consigo até descobrir de qual lugar do líbano ele veio. sei que nenhum negro tem a chance de saber de onde vieram seus antepassados. sei que minha família é de trabalhadores, mas que se houvessem negros fazendo o mesmo trabalho que eles, com certeza receberiam muito menos e teriam muito menos chance de ascender socialmente.

eu tenho vergonha de ser branca todo dia. vergonha quando o mecânico, o pedreiro, a faxineira e a cozinheira são negros. vergonha de mim, do nosso país, da escravidão. e muita vergonha de a gente não admitir isso. quantos brancos no nosso país se preocupam com o racismo e fazem dessa uma luta central nas suas vidas, mesmo os de esquerda? quantos brancos tem coragem de admitir que sempre tiveram muitos negros servindo e fazendo o trabalho pesado para que a gente pudesse ser intelectual, trabalhador, artista? quantos anos eu passei pra conseguir entender isso? e como ainda mais que o discurso é tao difícil mudar minha prática?

confesso, inclusive, que fico na dúvida sobre se devo ou não escrever esse texto. porque nós, brancos, precisamos que os negros nos ensinem o que é racismo. porque a gente não percebe, porque a gente é branco. mas ao mesmo em que tenho dúvida se devo escrever esse texto (porque quem deve falar alto nesse tema são os negros e não eu) eu sinto que também não posso me omitir. não posso me esconder. não posso me calar. porque eu sou branca e tenho vergonha. mas acho que a melhor maneira de parar de ter vergonha é lutando lado a lado com as negras e os negros. e, nesse sentido, lado a lado significa um passo atrás. porque são eles que devem ir na frente.

queria terminar dizendo que no nosso país tem gente que devia ter muito mais vergonha.

sou branca mas tem por aí gente muito mais branca do que eu que não tem vergonha. gente que não se incomoda, até hoje, em ter várias empregadas domésticas em casa (e nem percebe o quanto de escravidão existe nisso). gente que tem tanto privilégio que não consegue nem perceber. gente que tem piscina em casa, que viaja todo ano (ou todo mês?) pra fora do país, pra fazer compras. gente que gasta uma grana em balada mas não em aumento para os seus funcionários. gente que é dona de verdade das coisas, das pessoas (porque ser patrão é um jeito de ser dono de gente). gente que chama o bolsa família de bolsa esmola mesmo sem ter ideia de como é a vida de uma família tão miserável. gente que nunca pisou numa favela. gente que só conhece as mulheres negras que são suas serviçais. gente que acha que fila pra ir no banheiro pode ser comparada à fila do SUS. gente que acha que existe cabelo ruim, e que tudo bem porque é negro mas é limpinho. gente que nunca se permitiu colocar um pé pra fora da casa grande e não sabe da violencia diária que rola na senzala, e acha sua vida muito difícil porque tem depressão e vai no psiquiatra pra resolver, mas não tira a bunda da cadeira pra resolver seus problemas. essas pessoas deviam ter muita, muita vergonha. deviam ter tanta vergonha que deviam gastar o resto dos dias da sua vida  (e toda sua grana) lutando, procurando um jeito, um caminho, um meio, para corrigir as injustiças.

carta a uma companheira

Mulher,

Eu queria ter mais coragem para ser sua amiga. Essa sociedade ensinou a gente a competir, a querer ser uma melhor que a outra, mais bonita, mais esperta, melhor colocada. Mas não ensinou a gente a se amar, a cuidar uma da outra, a se apoiar nos tempos difíceis. Parece que disputamos sempre e que não conseguimos ser solidárias, e perceber o quanto nossos problemas, os desafios que enfrentamos e os desejos que temos são parecidos. Essa carta é uma tentativa de mudar um pouco essa situação.

E quero te dizer que eu te acho foda. Que com você na minha vida eu tenho mais coragem de ser eu mesma, que você me inspira e me faz ter vontade de ser mulher. Que ver sua força, sua garra e sua coragem me ajuda a respirar, a viver e acreditar que a gente pode mudar o mundo, juntas.

Você é linda. Muito. Não ouça o que as pessoas dizem quando elas reclamam do seu peso, do seu cabelo, da cor da sua pele, das suas unhas, da sua roupa. Não se sinta inferiorizada por essas mulheres na televisão, mesmo que tenham te ensinado que isso é que é beleza. Isso não é. Beleza é conseguir olhar no espelho e se reconhecer. É ser você mesma, com toda sua autenticidade, com todo seu estilo, com todo seu jeito que parece torto. A beleza não mora no que é igual, mas no que é diferente. E você é linda porque só você é assim.

Eu sei que é difícil de acreditar. Eu também não consigo me achar bonita, nunca. Mas estou te dizendo: é verdade. Você é muito linda, em todos os sentidos. Seu humor me encanta, cotidianamente. Seu jeito de olhar o mundo e perceber detalhes que só você enxerga faz o mundo ser mais bonito. Seu jeito de cuidar das pessoas, com tanto carinho e atenção faz a vida ter mais sentido.

Cada vez que você se coloca, fala o que pensa, faz o que tem vontade, o mundo fica melhor e você fica mais bonita. E eu tenho uma raiva profunda de todas as situações que te obrigam a ser outra pessoa. Do trabalho que te obriga a usar o mesmo tipo de roupa, sempre, igual a todas as outras, padronizada. Tenho muita raiva de todas as pessoas que te dizem quem você deve ser, que você deve emagrecer, que você devia cuidar mais do seu cabelo, que você não é bonita. Tenho um ódio profundo de todas as situações que te dão medo, vergonha ou te fazem se sentir culpada, porque sei que cada vez que você sente isso é mais difícil de ser você mesma,e isso é uma merda.

A outra coisa que eu quero te dizer é que você não precisa ter medo de ficar sozinha. Eu sei que te ensinaram a vida inteira que você precisa encontrar um homem que te faça feliz. Eu ainda sonho em vestir um vestido branco e encontrar um príncipe encantado que resolva todos os meus problemas. Porque ensinam pra gente que a nossa felicidade mora no homem que a gente vai encontrar, e que um dia, com ele, a vida vai ser mais leve.

Mas a nossa felicidade mora dentro da gente, e se a gente não encontrar ela em nós mesmas, com certeza não vai ser em um cara que vamos encontrar. Eu sei que dá muito medo de ficar sozinha, e eu também tenho. Mas por mais que você tenha encontrado um cara muito bacana, não dá pra entregar a sua felicidade para ele, e ele não pode virar o centro da sua vida. Você tem que ter coragem de dizer pra ele as coisas que te incomodam, e se ele disser que você está sendo chata lembre-se que chato é o cara que não aceita ser criticado, e não você por criticar, então não aceite essa ladainha. Você tem o direito de ter seu espaço e ele o dele, porque quando a gente se sufoca um no outro a gente se perde de um jeito que não é bom. Se perder às vezes um pouco no outro pode até ser bom, mas perder sua vida, seus amigos, as coisas que te apaixonam, para substituir tudo por um cara não vale a pena. Sua vida não pode ser ele.

Outra coisa importante: você tem que estabelecer limites. Perder a vida não pode. Não pode parar de ver as amigas e os amigos. Não pode brigar todo dia. Não pode não dividir as tarefas domésticas. Violência física não pode. Não podem joguinhos psicológicos para te fazer sentir culpada pelas inseguranças dele. Mentira não pode. Fazer chantagem dizendo que vai embora só pra te fazer correr atrás dele não pode. Não pode parar de ir ao cinema sozinha ou com as amigas. Não pode parar de ir no bar com outras pessoas. Não pode parar de conhecer gente nova.

Se a gente não impõe limites, se a gente não diz claramente que é machismo, que é violento, que nos incomoda, eles não vão perceber. Parte deles faz isso porque são uns tapados, uns bocós. Outra parte faz isso porque são uns canalhas mesmo e se aproveitam do poder que têm sobre a gente, e jogam com a gente, e brincam com nossos sentimentos. E de qualquer jeito está errado.

E tem mais: uma mulher precisa saber se respeitar. Se ele não te respeita, você tem todo o direito de ir embora.

Sei que dá medo. Que parece que você nunca vai encontrar um cara como ele. Que ele é o amor da sua vida. Vai por mim: tem muita gente nesse mundo. Você pode conhecer muitos caras diferentes, ser feliz com todos, com alguns mais, com outros menos. Alguns vão te desafiar, outros vão ser sem graça. A maior parte vai ter muito medo de amar, e se você quiser isso mesmo vai ter que dar uma chacoalhada neles, porque no fundo eles são quase todos uns medrosos.

O que importa é que tem gente suficiente nesse mundo pra você conhecer alguém melhor do que ele, e eu tenho certeza que vai. E tem também que as relações, o amor, são processos. São construções sociais, que a gente faz do jeito que a gente quer, mas que depois de construídas são muito, muito difíceis de desconstruir. Eu acho que se não der certo, não tem problema nenhum desencanar e partir para outra. Ele também vai fazer isso, e se for pra vocês se encontrarem daqui alguns anos, vai ser assim. Mas agora, nesse momento, ele te faz mal, ele não te respeita, ele não entende seus limites, e você sabe disso.

É claro que você é que sabe o que faz da sua vida. Só estou aqui te dizendo algumas coisas que, mesmo que sejam meio duras, são de coração. É que eu acredito muito em você, na sua força, na sua beleza e sei que você pode e merece ser mais feliz, muito mais feliz.

Eu te amo, companheira.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

por uma política


segura sua mão na minha

Segura sua mão na minha
Para fazermos juntos
O que eu não posso fazer sozinha

Porque quem tem um sonho
E coragem pra caminhar
Com a força das mãos dadas 
Pode muito mais do que sonhar.

Mesmo os passos tão difíceis
Mesmo suado o caminhar
Mesmo com tombos tão grandes
Mesmo errando sem parar

Porque andar nunca foi fácil
(todos tiveram que aprender)
Porque os tombos acontecem
(e não há como prever)
Porque errar não é pecado
(e até serve pra crescer).

É difícil e dá trabalho
Porque aqui temos também
Dificuldade e armadilhas
Como toda vida tem.

Mas aqui de diferente
Temos algo a acrescentar
Temos todos uns aos outros
E um sonho pelo qual lutar.

E esse sonho, companheira e companheiro,
Vale a pena sonhar
É um projeto tão bonito
Pruma pátria popular.

Por isso
Segura sua mão na minha
Para fazermos juntos
O que eu não posso fazer sozinha.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

mãos

(escrito em 13.12.2008 - Para R.)

Tuas mãos,
pesadas e fortes,
sabem fazer poesia.

Teus ombros,
cansados,
carregam muita história.

Teu sorriso disfarça,
com beleza,
a tristeza do caminho.

Tua boca,
com amor,
sabe gritar rebeldia.

No teu peito
bate um coração
que de luta, sonho e brincadeira,
produz vida.

E na tua prática, já sabes,
a vida que merecemos
um dia há de chegar.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

o professor

Eu tinha 16. Estava no primeiro colegial. Era uma das melhores alunas da sala, adorava estudar. Adorava as aulas que ele dava, sempre tão bonitas, bem preparadas, críticas, questionadoras. Era a primeira vez que ele dava aula para adolescentes, mas ele já tinha uns trinta.

Eu era bonita, e sabia encantar. Minha sexualidade recém-descoberta chamava atenção, minha inteligência, meu charme. Nunca tratei professores como seres de outro mundo. Pra mim, sempre foram pessoas interessantes que poderiam ser minhas amigas.

Mas eu me apaixonei. Era muito nova e não entendia. Achei que me apaixonava pelo homem, mas me apaixonava, na real, por aquilo que ele representava pra mim. O professor e todo o poder e inteligência que ele tinha.

E com todo meu charme em ação eu também encantei o professor. E ele se permitiu. Ele não entendia, eu não entendia. E fizemos tudo errado.

No começo a gente saía, trocava emails longos, bonitos, sobre a vida, sobre arte, sobre ciência, sobre literatura, sobre paixões... Um café, um almoço. Até que um dia foi uma volta no carro dele... nos beijamos. E naquele momento do beijo eu senti que tinha alguma coisa esquisita. O homem que eu beijava não era o professor, era uma outra pessoa. E ele saiu falando, que aquilo tinha que acontecer em segredo, que ninguém poderia saber, nunca, que se alguém soubesse de qualquer coisa a vida, a carreira, o casamento dele estariam arruinados.

E eu acabava de descobrir que tinha me enganado porque estava apaixonada pelo que ele representava como meu professor, pelo poder que ele tinha, por tudo que ele representava, e não pela pessoa que ele era. De repente me vi carregando todo o peso da responsabilidade sobre a vida dele, sobre o casamento dele, sobre a carreira dele, debaixo do meu silêncio. Ele não se responsabilizava pelo que fazia, jogava a culpa que sentia em cima de mim e eu tinha que viver com aquilo.

Foi em silêncio que eu aguentei os meses seguintes, até o final do ano. Mas era um silêncio insuportável. Fiquei triste, parei de ir tão bem nas aulas. Não conseguia prestar atenção em mais nada, muito menos nas aulas dele. Não conseguia conversar direito com minhas amigas, afinal, eu não podia contar nada nem pra elas. Minha vida não existiu durante seis meses, que eu aguentei firme porque sabia que no ano seguinte, ele não daria mais aula para mim.

Já era a última semana de aula quando uma moça da escola entrou na sala e como quem dá a melhor notícia do mundo nos conta que o professor seguiria com a nossa turma no ano seguinte. Eu nem percebi, mas comecei a chorar compulsivamente. Eu não conseguia mais ser forte frente ao peso de tanta responsabilidade. Eu não conseguia mais sentir tanta dor em silêncio.

Ela percebeu. Me chamou num canto e perguntou o que estava acontecendo. Eu contei, meio confusamente, e chorei mais ainda. Ela não queria saber da dor que eu sentia, não queria saber da preocupação e da responsabilidade que eu tinha sobre a carreira, a vida e o casamento do professor, ela não queria saber da minha decepção por me apaixonar por um personagem e não por uma pessoa. Ela só queria saber se a gente tinha feito sexo ou não. A insensibilidade dela também me machucou. O que me machucava era o silêncio, muito mais do que qualquer coisa.

Mas a questão que eu gostaria de tratar é: eu era uma criança, uma adolescente. Eu ia me apaixonar pelo meu professor do mesmo jeito que fiz muitas vezes antes. Eu ia me encantar, e ia tentar seduzir de alguma forma. Isso acontece. Mas ele era o professor. Ele era o responsável, o adulto. Ele não podia ter deixado acontecer. Ele não poderia correr o risco de criar uma situação que me deixasse tão vulnerável. Ele não podia colocar toda a culpa que ele sentia sobre meus ombros e me exigir silêncio.

Eu acho que nunca vou entender as relações que não podem ser públicas. Homens que escondem as mulheres, que separam tanto a vida de fora de casa e a vida entre quatro paredes que parecem ter vergonha, em público, do que fazem no privado. Mas eu sei que simplesmente pregar "professores não podem ficar com alunas" (coisa que ouvi durante minhas aulas de licenciatura), de maneira careta, como se fosse uma questão moral, não resolve o problema. Acho que o que resolve o problema é mostrar quanta dor pode ser criada, quanta injustiça construída e quanta irresponsabilidade é jogar esse tipo de responsabilidade nos ombros de uma menina.

E eu era só uma menina.

domingo, 22 de junho de 2014

mulher

mulher

se te ensinaram a ter uma voz mais suave
a amar com paixão
e a cuidar com carinho
                         isso não precisa ser um problema

mas se sua voz se cala diante de outra mais forte
se o amor vira submissão
e se o cuidado impede a luta
                        nem que seja por um instante

pode ser necessário gritar
odiar
e criticar com firmeza
                        por amor




(escrito durante a construção do 8 de março de 2008)

sábado, 21 de junho de 2014

maria sapatão

Desde muito cedo usar boné, cabelo curto e roupa larga sempre foram minhas opções preferidas. Proteção, facilidade e conforto sempre foram meus principais critérios. Nunca curti roupa apertada, que incomoda e que não tem bolso (uma coisa que nunca vou entender é por que raios as roupas para mulheres não tem bolsos). Na primeira série, lembro de ter de pedir permissão para ir de boné para a escola. Mas nada foi pior do que aquela quinta série. Um dia os meninos do primeiro colegial começaram a cantar "maria sapatão, sapatão, sapatão, de dia é maria, de noite é joão" toda vez que eu saía nos corredores da escola. No intervalo entre as aulas, na hora do recreio.

E como toda criança da quinta série venera os meninos do primeiro colegial, por mais estúpidos que eles sejam, meus amigos de sala também começaram a me tratar de um jeito esquisito, influenciados por aqueles meninos.

"maria sapatão, sapatão, sapatão, de dia é maria, de noite é joão"

Eu tinha doze anos e não entendia o que significava tudo aquilo. Não entendia por que eles usavam aquilo para me agredir. Entendia que eles achavam que eu era lésbica. Mas não entendia: eu não sabia se eu era ou não, sabia que era muito nova e que não precisava ter pressa em me preocupar com aquilo. Mas e se eu fosse, qual seria o problema? Por que eles usavam aquilo como se quisessem me machucar?

"maria sapatão, sapatão, sapatão, de dia é maria, de noite é joão"

Minha sexualidade naquela época não passava de uma brincadeira (afinal, eu tinha onze anos!). Já tinha beijado de língua, já tinha dado uns amassos, mas, a única certeza que tinha sobre minha sexualidade é que tinha um mundo por descobrir.

"maria sapatão, sapatão, sapatão, de dia é maria, de noite é joão"

O lance é que existir, daquele jeito, provocava.  Fugia da regra, não fazia sentido. E isso os meninos do primeiro colegial não podiam aceitar. Precisavam colocar um rótulo, precisavam agredir. Eles não queriam nada além de me fazer sentir mal.

Era muito ódio. E não conseguia entender. Perguntava "Qual o problema se eu for?" e não encontrava resposta, por mais que me esforçasse. Sem resposta me senti odiada por ser eu mesma. Ódio gratuito.

"maria sapatão, sapatão, sapatão, de dia é maria, de noite é joão"

O ódio dos outros tomou conta de mim. Me sentia feia, rejeitada, e nada fazia sentido. Não conseguia entender, mas sabia que me odiavam. Sentia que eu não podia ser feliz sendo quem eu sou. Tentei me matar.

"maria sapatão, sapatão, sapatão, de dia é maria, de noite é joão"

Talvez eu só quisesse mesmo chamar atenção. Não conseguia falar, não conseguia gritar aquela dor que apertava o peito. A palavra bullying ainda não existia, e as pessoas não ligavam muito para essas "zueras". Coisa de adolescente. (Até o dia que alguém entrou armado na escola e matou um monte de gente, aí inventaram um nome para esse tipo de agressão e começaram a se preocupar um pouco com impedir bullyings muito violentos).

Tudo que eu mais queria é que nada disso fosse importante. Que minhas roupas fossem menos importantes que minhas ideias, que minha sexualidade - ainda nem construída direito - não fosse tema de debate nem motivo de agressão. Não queria ser odiada.

E como era atenção que eu queria, e não morrer, sobrevivi e recebi atenção. Escrevi uma carta para os meus colegas de classe. Era uma poesia, que dizia como eu me sentia perdida na vida sem respeito, sem amizades, sem gente que se preocupasse com quem eu era e não com a minha aparência (se um dia eu encontrar essa poesia em algum arquivo eu posto ela aqui, mesmo ela provavelmente sendo bem ruim, brega, e cheia de reticências. Foi um grito de uma criança). Tirei uma cópia para cada pessoa do meu ano (da 5ªI e da 5ªII) e distribuí. Uma professora viu e acabou lendo minha carta/poesia para as pessoas de séries mais velhas, inclusive para aquele primeiro colegial. Também fiz terapia.

Mas um tempo depois uma galera do terceiro colegial colou em mim "ei, mina, você curte hardcore?" me perguntou um menino de dreads. Eu nem sabia o que era direito, mas disse que eu curtia sim, e ele me chamou pra dar rolê com eles. Fiz amigos do colegial. Que achavam muito daora uma mina com a minha idade debater as coisas que eu debatia. Que não ligavam pras minhas roupas. Que me apresentaram Dead Fish e um monte de som esquisito. E tinham umas mulheres. Elas eram bonitas e tinham desejos, tinham vontade, sabiam o que queriam da vida. Eu queria ser igual elas quando crescesse.

Demorei muitos anos para lembrar disso tudo, de tanto que machucou. A primeira vez que contei essa história eu já estava com mais de vinte, na faculdade. Foi o feminismo, os espaços auto-organizados e a força que aprendi a ter com outras mulheres, que me fez ter coragem de contar. E é o feminismo também que hoje me faz escrever. Porque acredito que contar histórias como essa (e com muitas que pretendo escrever, que vivi, que outras pessoas viveram, que poderiam ter existido) é trazer o privado para o público. É mostrar como é cruel e violenta a violência contra as mulheres. Uma violência que mata a gente um pouco todos os dias. E ela precisa ser pública, para se tornar absurda, para parar de existir.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

desculpa e obrigado

ela:
desculpa por não ter me preparado tanto para esse momento. desculpa que eu não sei fazer isso direito. desculpa que a vida tá difícil. desculpa, estou cansada. desculpa por te interromper. desculpa por estar confusa. desculpa te cortar. desculpa, não conheço. desculpa, você tem horas? desculpa por aparecer assim. desculpa chamar sua atenção. desculpa por ter saído com essa roupa. desculpa pelo modo de falar. desculpa que não deu tempo de me arrumar direito. desculpa por não ter feito o que eu queria. desculpa pelo medo. desculpa a vergonha. desculpa que não sei falar em público. desculpa por ter que pedir pra você fazer isso. desculpa que não sei arrumar isso. desculpa por fazer isso. desculpa por ter esse desejo. desculpa que não sei me comportar direito. desculpa por não te dar atenção. desculpa que eu não tou com vontade. desculpa, tô com dor de cabeça. desculpa, não deu tempo. desculpa por não saber me comportar em público. desculpa por ter provocado. desculpa por andar essa hora sozinha na rua. desculpa usar essa roupa. desculpa por ter vontade. desculpa por transar na primeira noite. desculpa a culpa.

ele:
obrigado pela atenção. obrigado por estar aqui. obrigado pelo carinho. obrigado por me deixar falar. obrigado por sair comigo. obrigado por me dar espaço. obrigado por aceitar. obrigado pela gentileza. obrigado por se arrumar pra mim. obrigado por não ligar pra minha roupa. obrigado pelo respeito. obrigado pelo desejo. obrigado por fazer o que eu queria. obrigado pela companhia. obrigado por me ouvir. obrigado pelo sexo. obrigado por ficar quieta. obrigado por admitir seus erros. obrigado por se esforçar. obrigado por deixar eu te proteger. obrigado por não ligar pra minha aparência. obrigado por voltar cedo. obrigado por deixar de sair com seus amigos pra ficar comigo. obrigado pela comida. obrigado pela cama arrumada. obrigado por limpar a casa. obrigado por lavar a louça. obrigado por cuidar de mim. obrigado por me deixar ficar. obrigado por não ligar pra isso. obrigado pelo esforço. obrigado por me entender. obrigado por ser tão fácil. obrigado por fazer direitinho. obrigado por ser comportada. obrigado pelo presente. obrigado por me desculpar.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

privilégios

E quando eu me cansar e a tristeza ou a preguiça ou até mesmo a dor me quiser refém me quiser enferma sem forças, na cama inerte Vou me lembrar dos privilégios da geladeira sempre cheia das aulas de artes e línguas dos livros nas estantes da cama e dos lençóis macios Que fizeram de mim quem sou muitas coisas boas mas não essa auto-piedade não esse cansaço fácil não essa falta de calos E vou me lembrar do povo que produziu minha comida e nem sempre teve a geladeira cheia que passou meus lençóis e só voltava pra casa no final de semana Das mulheres negras empregadas domésticas a quem devo tanto e que nunca se cansaram porque não tinham tempo porque não tinham o direito Meus privilégios são uma dívida com meu povo. E até que ele tenha geladeira cheia, livros nas estantes camas quentes, lençóis macios e toda a sorte de privilégios que eu tive Eu não posso me cansar Porque o povo explorado construiu meus privilégios e nunca descansou. Por que eu descansaria?