sábado, 21 de junho de 2014

maria sapatão

Desde muito cedo usar boné, cabelo curto e roupa larga sempre foram minhas opções preferidas. Proteção, facilidade e conforto sempre foram meus principais critérios. Nunca curti roupa apertada, que incomoda e que não tem bolso (uma coisa que nunca vou entender é por que raios as roupas para mulheres não tem bolsos). Na primeira série, lembro de ter de pedir permissão para ir de boné para a escola. Mas nada foi pior do que aquela quinta série. Um dia os meninos do primeiro colegial começaram a cantar "maria sapatão, sapatão, sapatão, de dia é maria, de noite é joão" toda vez que eu saía nos corredores da escola. No intervalo entre as aulas, na hora do recreio.

E como toda criança da quinta série venera os meninos do primeiro colegial, por mais estúpidos que eles sejam, meus amigos de sala também começaram a me tratar de um jeito esquisito, influenciados por aqueles meninos.

"maria sapatão, sapatão, sapatão, de dia é maria, de noite é joão"

Eu tinha doze anos e não entendia o que significava tudo aquilo. Não entendia por que eles usavam aquilo para me agredir. Entendia que eles achavam que eu era lésbica. Mas não entendia: eu não sabia se eu era ou não, sabia que era muito nova e que não precisava ter pressa em me preocupar com aquilo. Mas e se eu fosse, qual seria o problema? Por que eles usavam aquilo como se quisessem me machucar?

"maria sapatão, sapatão, sapatão, de dia é maria, de noite é joão"

Minha sexualidade naquela época não passava de uma brincadeira (afinal, eu tinha onze anos!). Já tinha beijado de língua, já tinha dado uns amassos, mas, a única certeza que tinha sobre minha sexualidade é que tinha um mundo por descobrir.

"maria sapatão, sapatão, sapatão, de dia é maria, de noite é joão"

O lance é que existir, daquele jeito, provocava.  Fugia da regra, não fazia sentido. E isso os meninos do primeiro colegial não podiam aceitar. Precisavam colocar um rótulo, precisavam agredir. Eles não queriam nada além de me fazer sentir mal.

Era muito ódio. E não conseguia entender. Perguntava "Qual o problema se eu for?" e não encontrava resposta, por mais que me esforçasse. Sem resposta me senti odiada por ser eu mesma. Ódio gratuito.

"maria sapatão, sapatão, sapatão, de dia é maria, de noite é joão"

O ódio dos outros tomou conta de mim. Me sentia feia, rejeitada, e nada fazia sentido. Não conseguia entender, mas sabia que me odiavam. Sentia que eu não podia ser feliz sendo quem eu sou. Tentei me matar.

"maria sapatão, sapatão, sapatão, de dia é maria, de noite é joão"

Talvez eu só quisesse mesmo chamar atenção. Não conseguia falar, não conseguia gritar aquela dor que apertava o peito. A palavra bullying ainda não existia, e as pessoas não ligavam muito para essas "zueras". Coisa de adolescente. (Até o dia que alguém entrou armado na escola e matou um monte de gente, aí inventaram um nome para esse tipo de agressão e começaram a se preocupar um pouco com impedir bullyings muito violentos).

Tudo que eu mais queria é que nada disso fosse importante. Que minhas roupas fossem menos importantes que minhas ideias, que minha sexualidade - ainda nem construída direito - não fosse tema de debate nem motivo de agressão. Não queria ser odiada.

E como era atenção que eu queria, e não morrer, sobrevivi e recebi atenção. Escrevi uma carta para os meus colegas de classe. Era uma poesia, que dizia como eu me sentia perdida na vida sem respeito, sem amizades, sem gente que se preocupasse com quem eu era e não com a minha aparência (se um dia eu encontrar essa poesia em algum arquivo eu posto ela aqui, mesmo ela provavelmente sendo bem ruim, brega, e cheia de reticências. Foi um grito de uma criança). Tirei uma cópia para cada pessoa do meu ano (da 5ªI e da 5ªII) e distribuí. Uma professora viu e acabou lendo minha carta/poesia para as pessoas de séries mais velhas, inclusive para aquele primeiro colegial. Também fiz terapia.

Mas um tempo depois uma galera do terceiro colegial colou em mim "ei, mina, você curte hardcore?" me perguntou um menino de dreads. Eu nem sabia o que era direito, mas disse que eu curtia sim, e ele me chamou pra dar rolê com eles. Fiz amigos do colegial. Que achavam muito daora uma mina com a minha idade debater as coisas que eu debatia. Que não ligavam pras minhas roupas. Que me apresentaram Dead Fish e um monte de som esquisito. E tinham umas mulheres. Elas eram bonitas e tinham desejos, tinham vontade, sabiam o que queriam da vida. Eu queria ser igual elas quando crescesse.

Demorei muitos anos para lembrar disso tudo, de tanto que machucou. A primeira vez que contei essa história eu já estava com mais de vinte, na faculdade. Foi o feminismo, os espaços auto-organizados e a força que aprendi a ter com outras mulheres, que me fez ter coragem de contar. E é o feminismo também que hoje me faz escrever. Porque acredito que contar histórias como essa (e com muitas que pretendo escrever, que vivi, que outras pessoas viveram, que poderiam ter existido) é trazer o privado para o público. É mostrar como é cruel e violenta a violência contra as mulheres. Uma violência que mata a gente um pouco todos os dias. E ela precisa ser pública, para se tornar absurda, para parar de existir.

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