segunda-feira, 30 de junho de 2014

vergonha justa

a ordem me ensinou a ter muitas vergonhas. a me sentir culpada por muitas coisas. mas nunca as certas.
companheiras e companheiros negros, que fizeram a crítica dolorida, me ensinaram a sentir uma vergonha justa.

esse texto é sobre isso.

eu sempre tive vergonha de ser mulher. vergonha de não saber sentar direito, com as pernas fechadas. vergonha de não saber segurar o garfo direito. vergonha de não me vestir "igual menina". vergonha de gostar de sexo. vergonha de usar saia curta. vergonha dos meus pêlos, sempre tantos e tão escuros. vergonha pelos peitos pequenos. vergonha pela bunda grande. vergonha por não saber usar salto nem maquiagem. vergonha de não saber a resposta. vergonha de falar ao telefone. vergonha de não saber o nome das pessoas. vergonha por ser gorda. vergonha por não conseguir ser igual às mulheres da tevê. vergonha por não ser a mulher que ele achava que eu era. vergonha por estar sozinha. vergonha por estar mal acompanhada. vergonha por transar na primeira vez. vergonha de falar as coisas que me incomodam. vergonha de ser muito alta. vergonha de parecer sapatão. vergonha de desejar. vergonha de me apaixonar loucamente. vergonha de tomar decisões. vergonha de estar em posições de poder. vergonha de aparecer. vergonha de viajar sozinha. vergonha de falar com o mecânico. vergonha das cantadas na rua. vergonha.

quanto mais escrevo e vivo e amadureço e conheço o mundo, entendo que essa vergonha não faz nenhum sentido. que nossos padrões de beleza são estúpidos, as roupas e as coisas que as mulheres tem que fazer para serem bonitas são absolutamente desconfortáveis. que sexo é bom e eu tenho todo direito de gostar e ter vontades. que meu corpo e meus desejos são o que eu sou, e que vou bem, obrigada. que eu não preciso me casar para não me sentir solitária e que não vou encontrar a felicidade da minha vida em um homem. que não sou culpada pelo machismo alheio e que ter vergonha não adianta, o melhor é enfrentar. fui aprendendo, porque é muito difícil não ter vergonha, um mecanismo mágico pra enfrentar a vergonha toda vez que ela aparece: ter vergonha de ter vergonha. olhar pra mulher que eu quero ser e saber que me dá orgulho ser mulher e enfrentar a porra toda.

mas me ensinaram (ainda bem) a ter uma outra vergonha, uma vergonha justa: vergonha de ser branca. vergonha de ser estudante da USP. vergonha de ter tido uma empregada doméstica que dormia na minha casa, negra, nordestina. vergonha de chegar aos vinte e cinco anos de idade sem nunca ter tido que trabalhar e pagar todas as minhas contas. vergonha dos privilégios.

a vergonha é justa porque não culpabiliza a origem, mas a opção, as escolhas de vida. sei que não tenho culpa por ter nascido branca, por ser filha da minha mãe e do meu pai, por não ter precisado trabalhar cedo. mas sei que tudo isso me privilegiou e segue me privilegiando. tudo isso faz minha vida ser muito mais fácil, mesmo que ela não seja fácil. tudo isso me coloca, de partida, com uma vantagem muito injusta sobre aqueles e aquelas que mais trabalharam, mais suaram e mais deram a vida construindo toda a riqueza do nosso país: o povo preto, trabalhador, em especial as mulheres. e ao mesmo tempo que não tenho culpa pela minha origem, tenho que assumir a responsabilidade pelo meu presente. tenho que saber questionar quando pessoas brancas como eu fazem comentários racistas. tenho que achar um absurdo toda vez que vou pra algum lugar (seja a faculdade, um jantar de família ou uma reunião de trabalho) e não encontro negros. tenho que privilegiar os negros (em detrimento de mim mesma) para assumirem as tarefas mais importantes, os papéis de destaque.

mas olha: sou branca mas uma parte muito pequena e distante da minha família foi exploradora. outra parte, como o bisavô libanês que veio sozinho para o brasil com seis anos em um navio e trabalhou a vida inteira de sol a sol, sempre foi trabalhadora e eu me orgulho do sangue trabalhador que corre nas minhas veias. mas mesmo assim sei que é um privilégio eu poder usar o sobrenome que foi do meu bisavô, que se pesquisar eu consigo até descobrir de qual lugar do líbano ele veio. sei que nenhum negro tem a chance de saber de onde vieram seus antepassados. sei que minha família é de trabalhadores, mas que se houvessem negros fazendo o mesmo trabalho que eles, com certeza receberiam muito menos e teriam muito menos chance de ascender socialmente.

eu tenho vergonha de ser branca todo dia. vergonha quando o mecânico, o pedreiro, a faxineira e a cozinheira são negros. vergonha de mim, do nosso país, da escravidão. e muita vergonha de a gente não admitir isso. quantos brancos no nosso país se preocupam com o racismo e fazem dessa uma luta central nas suas vidas, mesmo os de esquerda? quantos brancos tem coragem de admitir que sempre tiveram muitos negros servindo e fazendo o trabalho pesado para que a gente pudesse ser intelectual, trabalhador, artista? quantos anos eu passei pra conseguir entender isso? e como ainda mais que o discurso é tao difícil mudar minha prática?

confesso, inclusive, que fico na dúvida sobre se devo ou não escrever esse texto. porque nós, brancos, precisamos que os negros nos ensinem o que é racismo. porque a gente não percebe, porque a gente é branco. mas ao mesmo em que tenho dúvida se devo escrever esse texto (porque quem deve falar alto nesse tema são os negros e não eu) eu sinto que também não posso me omitir. não posso me esconder. não posso me calar. porque eu sou branca e tenho vergonha. mas acho que a melhor maneira de parar de ter vergonha é lutando lado a lado com as negras e os negros. e, nesse sentido, lado a lado significa um passo atrás. porque são eles que devem ir na frente.

queria terminar dizendo que no nosso país tem gente que devia ter muito mais vergonha.

sou branca mas tem por aí gente muito mais branca do que eu que não tem vergonha. gente que não se incomoda, até hoje, em ter várias empregadas domésticas em casa (e nem percebe o quanto de escravidão existe nisso). gente que tem tanto privilégio que não consegue nem perceber. gente que tem piscina em casa, que viaja todo ano (ou todo mês?) pra fora do país, pra fazer compras. gente que gasta uma grana em balada mas não em aumento para os seus funcionários. gente que é dona de verdade das coisas, das pessoas (porque ser patrão é um jeito de ser dono de gente). gente que chama o bolsa família de bolsa esmola mesmo sem ter ideia de como é a vida de uma família tão miserável. gente que nunca pisou numa favela. gente que só conhece as mulheres negras que são suas serviçais. gente que acha que fila pra ir no banheiro pode ser comparada à fila do SUS. gente que acha que existe cabelo ruim, e que tudo bem porque é negro mas é limpinho. gente que nunca se permitiu colocar um pé pra fora da casa grande e não sabe da violencia diária que rola na senzala, e acha sua vida muito difícil porque tem depressão e vai no psiquiatra pra resolver, mas não tira a bunda da cadeira pra resolver seus problemas. essas pessoas deviam ter muita, muita vergonha. deviam ter tanta vergonha que deviam gastar o resto dos dias da sua vida  (e toda sua grana) lutando, procurando um jeito, um caminho, um meio, para corrigir as injustiças.

Um comentário: